sábado, 13 de dezembro de 2008

SOBRE POESIA

Gilberto Wallace Battilana

Vivemos um momento de uma superprodução e divulgação intelectual e científica, o que torna impossível a um homem comum manter-se medianamente informado a respeito do que acontece em todas as atividades humanas, como era possível na Renascença.
Então, por que acrescentar a esse incessante jorrar de idéias e informações, mais um texto que nada, ou muito pouco, vai acrescentar ao conhecimento da poesia? É evidente que por motivos pessoais, pelo mesmo impulso que me leva a desejar transmitir aos outros, através de meus poemas, a minha experiência de ser existente e pensante.
Não que considere ter um pensamento original a apresentar ou me proponha como criador de novas formas ou processos artísticos. Pretendo-me apenas uma testemunha do meu tempo e da sociedade em que vivo.
Aliás, concordo com a classificação de Ezra Pound, apontando os escritores e poetas como: inventores, mestres e diluidores. Aos primeiros cabe a tarefa de criar novas formas ou processos artísticos. Ao segundo grupo, a estratificação em modelos clássicos dessa nova forma de processo, e, aos últimos, a disseminação, a massificação dessas formas e processos. Enquadro-me, de maneira realística, nesta última categoria.
Definida a minha posição, quero começar dizendo que não é minha intenção nessa formulação de idéias sobre poesia enfocar aspectos temáticos ou formais, tais como os de estrutura, de métrica, de ritmo ou rima, nem dos elementos morfo-sintáticos e semânticos da função da linguagem aplicada à poesia, nem vir aqui discorrer sobre escolas ou estilos literários. Isso, melhor do que eu, fazem os professores de literatura.
Pretendo falar a respeito da minha experiência com a poesia, do meu fazer literário, das idéias adquiridas ao longo dos anos no trato com as palavras durante longas manhãs, tarde, noites, solitárias, desde quando a minha única companhia era a caneta e o papel até agora quando me defronto com o computador. Porque aqui quero lembrar que o fazer poético é, antes de tudo, um artesanato de solidão.
E falo das idéias que adquiri, concordando com Hegel na sua expressão contra o individualismo vaidoso, quando lembra que todas as manifestações intelectuais não são apenas produtos da razão consciente do indivíduo, nem pertencem apenas a uma época, mas são uma herança, um resultado, do pensamento de todas as gerações anteriores.
É esta reflexão sobre a linguagem como meio de expressão artística – que é o tema de alguns dos meus poemas – que me conduz ao exame da minha perplexidade frente à condição humana e da minha função enquanto ser social.
Se a criação poética é um ato solitário onde se sobrepõe a psicologia e a personalidade de quem escreve, não podemos ignorar que a arte é uma atividade social, porque feita para os outros, e inserida dentro de um complexo contexto político, econômico e ético. Mas o que faz a arte é a individualidade de quem a cria. Não que o poeta imponha a sua individualidade, ele a aceita, sem confundi-la com exceção. E insisto nessa idéia para reforçar a imagem do poeta como um homem que encontrou a expressão da sua individualidade no fazer literário, no artesanato poético. Assim como um arquiteto se propõe imaginar e criar no papel casas e edifícios, assim o poeta se propõe transmutar a sua imaginação em linguagem, transmitindo a experiência do que vê e vive.
Só que o poeta trabalha sobre si mesmo. É evidente que ele tem modelos estéticos e filosóficos. Mas no momento solitário da criação, é a minha experiência, o meu conhecimento, os meus sentimentos, a minha paixão, portanto, a minha individualidade que conta. O resto, o mundo exterior, embora integre o poema, fica suspenso na sua existência durante a elaboração, só quando acabado o poema é que volto a integrar-me nesta ambivalência estrutural na qual me consolido como ser social.
Nesta ambivalência que rege as relações humanas e onde a aparência, sob todas as suas formas, é o fundamento de múltiplas situações e atos sociais. O ato da leitura é uma prova disso. Na diversidade das intenções que nos reúne está evidenciado o jogo das aparências que a realidade em que vivemos nos exige. Apenas sós frente ao espelho da nossa consciência é que somos verdadeiros; é que nos permitimos atingir a sincera compreensão de quem somos. Pois, na poesia, o homem que é poeta não só realiza essa tentativa de busca da sua verdade interior, como a revela através do poema, oferecendo-a ao leitor que se propuser ler, desarmado de outras intenções que não sejam a da fruição de um prazer e a da possibilidade de um aprendizado do que o poeta retira do que tem de mais lúcido na sua consciência e de mais sensível no seu coração.
Para alcançar a poesia, para encontrar dentro de nós a capacidade de expressão através do poema, o primeiro passo é a libertação das convenções sociais, do temor do ridículo e da opinião alheia. A opinião alheia transformada em crítica só é válida para quem está aparelhado culturalmente para fazê-la, e deve interessar ao poeta somente depois do poema acabado, porque aí o poema já não é mais seu.
O ato de escrever um poema é um ritual em que só deve contar a vontade de manifestação do poeta. Essa voz interior que lhe mostra que lhe indica as imagens desse sonho que a lucidez transforma em palavras. E é através das palavras, da linguagem, instrumento que usamos para formalizar a poesia, que revelo a minha admiração, a minha perplexidade diante do mundo visível, real, mas sempre novo e desconhecido. E os atributos deste instrumento: a linguagem, são a complexidade, a ironia e o paradoxo.
A cada dia a vida nos oferece uma face diferente. E é dessa novidade, dessa diferenciação que passa despercebida de todos, menos dos olhos do poeta que sabe descobrir nas coisas já vistas e conhecidas o seu raro lado intocado, desse olhar em que o silêncio da contemplação se faz palavra, que nasce o poema. O poema é a anotação desse instante de perplexidade, desse espanto que intriga, surpreende e maravilha quando o descobrimos no que nos é familiar, no comum, no banal, a visão desse ângulo inédito, ambíguo, que faz a beleza, a verdade, a perfeição, parecer possível.
Mas a partir desse momento em que o silêncio da admiração se transforma em palavra, como procede o poeta? Para o leitor que recebe o poema pronto no livro, supõe-se que exista uma certa curiosidade de saber a maneira de agir do poeta na escritura do poema.
Para mim, não há uma regra. Ainda que o poema se apresente como um todo unitário, indivisível, ele é, na maioria das vezes, escrito de forma fragmentada. Faz-se a anotação de uma idéia, de um verso ou de uma estrofe num dia - raramente o poema vem integral, com todos os seus versos – a estes acrescentam-se outros algum tempo depois; encontra-se anotações anteriores adequadas para aquele poema que se está compondo e, assim, num trabalho de elaboração – através dos indefiníveis meandros do inconsciente e do entrelaçamento dessas partes aparentemente desconexas vai se formando um retábulo ou, se preferir, uma colcha de retalhos que, ao se apresentar aos olhos do leitor, mostra-se um todo harmonioso, conjugando idéia e forma como se tivesse sido escrito num só momento de inspiração. Esses vêm num jato de idéias e imagens que, por vezes, a mão não é ágil o suficiente para anotá-las, tal a profusão delas. Algumas perdem-se nesse atropelo e é necessário recuperá-las num esforço de reflexão até ajoujá-las ao verso.
A poesia é uma verdade que constitui o seu próprio testemunho. Uma verdade que busca o reconhecimento dos outros, todo texto é um pedido de leitura. Ela se revela num transe que é o poema ditado vivo à consciência. O poeta escreve até mesmo o que desconhece, descobrindo assim o poema, impelido a viver através do verso o que não encontra no universo visível, ultrapassando, de algum modo, as portas da percepção e da emoção comuns, como se uma luz interna iluminasse as cavernas de sua estrutura psicológica, conduzindo-o à convicção de uma paixão que o poeta reduz à palavras que revelam esse outro universo cuja existência é a do poema onde o leitor ao conseguir desvenda-lo e compreende-lo, alia-se ao poeta nesta fruição do prazer que nos causa a beleza da forma conjugada à revelação de um lado intocado de tudo o que existe e até do que, não existindo, passa a ter existência no poema.
“Por que se propõe alguém a escrever poesia?”
Foi William Auden quem encontrou a resposta que melhor se coaduna com a minha forma de pensar, diz ele:
“Se alguém a quem se fizer essa pergunta, responder : “Porque eu gosto de ficar junto às palavras, ouvindo o que elas dizem, então é possível que venha a tornar-se poeta”.
Eu me filio à corrente que adota a poética que busca a natureza específica e o valor da poesia na maneira como são dispostas as palavras para expressar as emoções, e no modo pelo qual a realidade é analisada pelas virtualidades da linguagem. Nesta corrente de pensamento que propõe que o poema antes de ser um ente ético, tem de ser estético, e, antes de ser moral, tem de ser bem escrito.
Pope nos diz que o poema bem escrito é a expressão do que foi freqüentemente pensado, mas nunca tão bem expresso. Daí se poderia supor que o poema seria só a sua forma de expressão? Eu penso que o poema se faz de uma simbiose entre o conhecimento da expressão e a força da paixão. Porque a poesia é uma maneira de dizer as coisas que não podem ser ditas de outro modo. O poeta busca, em cada poema, expressar a totalidade da sua compreensão do que vê com a lucidez da sua imaginação. Essa compreensão emana de uma interioridade absoluta onde nós, os que escrevemos, apostamos, em cada poema, o tudo e o nada. O que está escrito em qualquer um dos meus poemas se torna verdade. A minha verdade à procura de uma confluência com a verdade do leitor. Mesmo quando na compreensão do leitor o poema atinge outro sentido, outra significação.
Jean-Arthur Rimbaud respondendo a uma pergunta a respeito do que queria dizer com determinado poema, parece-me ter deixado bem clara essa questão ao explicar : “Eu quis dizer o que está nele, literalmente, e em todos os outros sentidos”.
O poema é algo que arrancamos de dentro de nós mesmos, do nosso passado, das nossas experiências, das nossas leituras, da nossa imaginação, e que, por vezes, não conseguimos avaliar em toda a sua extensão. Por isso o entregamos aos outros, ao leitor, ao crítico, que, muitas vezes, na sua análise do poema nos revela, nessa pluralidade de entendimentos, um sentido que desconhecemos.
Mas essa totalidade expressa em cada poema não é definitiva e, portanto, é verdadeira para aquele momento, para aquele poema. Se há algo que a poesia nos ensina é a nossa efemeridade que todo aquele que deixa a sua marca através da arte tenta conjurar. O que aspiramos, os que nos dedicamos a qualquer forma de arte, ao assinarmos a obra que criamos é vencer o esquecimento a que a morte nos condena, através de um nome, de uma identificação que desejamos perdure além da nossa existência, sabendo que ela nos é acessória, que nos ultrapassa.
E aí, nesse paradoxo de uma arte que é paixão de uma perfeição irrealizável, reside a ironia de que todo aquele que se dedica à poesia não se pode despir. É com esta paradoxal posição entre a paixão da mão que escreve e a ironia do olhar que examina que se deve armar o poeta na composição do poema.
Encarando o drama da sua própria existência efêmera com a olhada irônica sobre o que o cotidiano nos oferece, o poeta, ao conseguir alcançar a plenitude da sua composição entre estilo e paixão, vence as complexidades e contradições da sua experiência, estabelecendo um jogo de significados através dos quais atinge a sua expressão final: o poema. A ironia e o paradoxo constituem recursos para considerar as atitudes que ameaçam as assumidas pelo poeta no seu poema.
Não deve o poeta procurar fazer do poema apenas a afirmação de uma verdade, e já é muito, também a expressão, através da beleza da forma, da inquietação que cerca cada ser humano, com suas incertezas e dúvidas frente ao mistério da vida, na tentativa de descoberta de sua identidade pessoal. O poema procura ser a afirmação de um conhecimento que está destinado a ficar incompleto, pois se assim não fosse não haveria o próximo poema que resulta de uma nova tentativa de encontrar a resposta para essa indagação, como escrevi num poema, “da dualidade de uma consciência sonhadora e um coração real”, isto é, entre o sentimento da imortalidade que cada homem abriga em si e da certeza da nossa extinção enquanto ser existente.

Nenhum comentário: